quarta-feira, 29 de julho de 2009

Embirrações XIV

Muito sofisticado nas suas antipatias, o chefe José Avillez, do restaurante Tavares e do JA, apresenta-nos o pepperoni como o seu desafecto alimentar. Ou terá mais a ver mais com a sua juventude, já contemporânea da generalização das pizzas em Portugal?

terça-feira, 28 de julho de 2009

Leilão (para crentes)








Não são dadas informações sobre a proveniência, nem há pistas sobre o percurso dos vinhos que vão em leilão no Palácio do Correio Mor. Quem quiser arriscar só tem que dar um salto à Calçada do Combro, hoje ou amanhã à noite. Depois basta rezar para estejam em condições (mais, aqui).

domingo, 26 de julho de 2009

Pub Grátis (cozinha de garagem?)


Embirrações XIII

Luís Antunes, o intrépido Xarax que comanda o Fórum Sabores da Revista de Vinhos, sendo tambem crítico gastronómico da publicação, dispensa azeitonas.

sábado, 25 de julho de 2009

Silly season (fds a banhos)

(tentativa de fazer) crónica social:

1

Um famoso chefe português almoçava ontem com os filhos no terraço do restaurante de um novo hotel de Vilamoura. Um indiscreta olhadela para a mesa e vêm-se os petizes a deliciarem-se com pratos de massa: bolonhesa, pomo d’ouro, Etc... Os cumprimentos da praxe e uma das crianças olha para mim como quem diz: “finalmente um prato cheio e de comida a sério, não é cá aquelas coisas que o meu pai está sempre a inventar” (não revelo qual das crianças foi não vá ela sofrer represálias)

2

9 a.m. Refastelo-me na cama da varanda, ainda a digerir o jantar de véspera, e abro uma revista do hotel. "Preferred lifestyle" é o título da publicação e pertence à cadeia de que o hotel é membro. Folheio e na página 14 paro para ler uma curta sobre a exposição de Francis Bacon, na Tate, em Londres. Olho para a página da direita e esboço um sorriso ao ver um anúncio a roupa de cama de uma marca italiana de nome Frette. Os olhos voltam à página da esquerda e fixam-se no sugestivo texto: “Wake up and smell the Kona”. Levanto-me, lavo a cara para acordar definitivamente e resolvo não seguir a sugestão. Hoje quero chá.

sexta-feira, 24 de julho de 2009

Mesa Marcada no Hotel Babilónia

Hotel Babilónia é um programa de rádio de Pedro Rolo Duarte e João Gobern que vai para o ar aos Sábados entre as 10h e as 12h, na Antena 1. Acontece que amanhã, a partir das 11h, vamos ter Mesa Marcada com a presença do Duarte Calvão no programa.

Os sete pecados mortais... em copo!


O copo do orgulho, da vaidade, vistoso e narcisista, objecto de ostentação...

Embirrações XII

O chefe milanês Augusto Gemelli, do restaurante Gemelli, apesar de já viver em Lisboa há mais de uma dúzia de anos, diz que não gosta de fígado de vaca. Ou seja, as típicas iscas lisboetas, nem vê-las.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Os sete pecados mortais... em copo!


Kapcer Hamilton desenhou sete copos de vinho, ilustrativos dos sete pecados mortais, apropriados para cada estado de espírito. Este é o primeiro da série, o copo do pecado da ira, agressivo e afiado...

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Resposta a um guloso

O nosso amigo José Tomáz Mello Breyner fez-nos o seguinte desafio num comentário a este post: "A propósito de Caprichos Lácteos e aproveitando esta época estival, gostaria de sugerir aos meus amigos e distintos críticos que se lembrassem de fazer uma reportagem sobre gelados. Claro que o Santini será sempre um sitio a visitar. Mas será que já existem alternativas com qualidade?"
Pois bem, reportagem não faço, mas deixo duas recomendações em Lisboa. A primeira, já mais conhecida, é o Fragoleto, na Baixa (Rua da Prata, 80, tel. 218 877 971), artesanais de escola italiana, com muitos sabores, com frutas da estação e outros menos vistos. A segunda, está menos divulgada, porque se trata essencialmente de uma loja de chocolates e cafés de São Tomé e Príncipe. Chama-se Corallo Cacau & Café e fica na Rua Cecílio de Sousa, 85, quase na esquina com a Rua da Escola Politécnica, quase a chegar ao largo do Príncipe Real. Fazem, na altura, versões gelado e sorvete (sem leite, o meu preferido) com o seu óptimo chocolate. São extraordinários. Espero ter ajudado a tua gulodice estival, caro Zé Tomáz.

Gadgets IV


Mais uma coluna de som em formato especialmente apelativo para os enófilos. Será que o formato magnum apresenta um som mais nítido e profundo?

Gadgets III


Para o enófilo que já tem tudo... um par de colunas de som conectáveis via USB. Serão Riedel?

terça-feira, 21 de julho de 2009

O primeiro vinho de gelo brasileiro...


Não é uma graçola fácil, um trocadilho infantil ou uma frase inflamatória, tão típica nas artes da publicidade para prender a atenção. É mesmo real e palpável, o Brasil acabou de fazer o seu primeiro “vinho de gelo”, ou, como mais pomposamente o apelidaram, porque os estrangeirismos são sempre mais fáceis de vender, o primeiro Icewine brasileiro…
E não, não é mais um destes Icewines modernos e de pacotilha, com uvas artificialmente congeladas em câmaras frigoríficas, disponíveis desde a Costa Rica ao Burkina Faso. Não senhor, este é um Icewine genuíno, puro e duro, à moda clássica da Alemanha, Áustria e Canadá, elaborado com uvas congeladas naturalmente na vinha, vindimadas a um pouco menos de 7ºC negativos! Uma vinha de Cabernet Sauvignon, plantada a cerca de 1.300 metros de altitude, na Serra Catarina, está na origem deste aparente contra-senso. Quem diria?

Caprichos lácteos


Motivado pelo sucesso do negócio da pequena queijaria de família, o produtor Graham Kirkham resolveu construir uma nova fábrica para poder dar resposta às encomendas que não paravam de crescer. Pensou-a como algo grandioso e único e endividou-se para realizar o projecto. Mas as coisas começaram por correr mal. A história é contada na primeira pessoa, no FT Weekend do passado Sábado (de onde também é retirada a foto):

"The first day, I made 20 cheeses – about 200 kilos. It was much easier working in the new space and the first curds tasted excellent. Two weeks on, I’d made 2,800 kilos of cheese, and the first batch was ready. I stuck the cheese iron in and put a morsel of cheese on my tongue.What had I done? I was horrified. Instead of being buttery, mellow and fluffy, it had some weird, fruity flavour I couldn’t define. I went to check the others and they were all the same. I fetched my mother, who just spat it out. "

(vale a pena ler o artigo completo para saber o que se passou. Aqui)

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Sala com vista

Restaurante Tágide

Não há nada mais irritante do que ir a um restaurante com uma localização privilegiada e ser confrontado com a mediocridade. Como se esse factor por si só dispensasse o conteúdo. Como se a vista nos embriagasse os sentidos e não necessitássemos mais do que o básico para reconfortar o estômago. Que atire a primeira pedra quem não teve já este sentimento ao sair de um miradouro, ou de uma esplanada à beira Tejo - só para dar dois exemplos em Lisboa.

Foi por isso com agrado que há dias saí do Tágide com um sentimento de satisfação. Não porque neste local, com vista impar sobre a cidade, as propostas gastronómicas sejam fantásticas, mas porque, pelo menos, proporcionam uma refeição acima da média e por um preço atractivo.

O Tágide fica no Chiado num edifício que remonta à época pombalina. Enquanto restaurante existe desde 1973 tendo sido recentemente alvo uma remodelação na decoração, onde elementos contemporâneos passaram a conviver com valores históricos, como os lustres e os painéis de azulejo, ambos do século XVIII.



O restaurante funciona de terça-feira a sábado ao almoço e sextas-feiras e sábados também ao jantar. Existe um menu de almoço por 23€ (3 pratos) e um de jantar por 30€ (5 pratos). Com estes menus pretende-se uma boa aposta em termos de preço/qualidade, mas para quem quiser exceder-se um pouco mais tem à disposição, à carta, outras opções de escolha (mais em termos de pratos de carne, 6, do que de peixe, apenas 3 (aos quais acresce uma massa e um vegetariano, além das entradas e das sobremesas).

Neste local pratica-se uma cozinha de fusão de preponderância portuguesa, francesa, italiana e também de alguma influência oriental. No jantar que lá fizemos recentemente, a opção recaiu no menu. Primeiro, enquanto esperávamos a chegada dos pratos, fomos enganando a fome com pão e azeite e umas boas azeitonas marinadas com travo a orégãos e raspa de laranja.

Uma fresca e equilibrada Vichyssoise de camarão viria a ser o primeiro prato. Seguiu-se-lhe uma tosta com foie gras (“cuit”) acompanhada de figo, fresco e em compota, numa combinação agradável, embora algo comprometida por uma matéria-prima que não era de excelência, tal como não o era o lombo de robalo da proposta de peixe que veio de seguida. Neste caso, no entanto, é de realçar a excelente combinação com o acompanhamento de massa de arroz salteada com citronella, a dar um toque do sudoeste asiático ao conjunto. Como prato de carne tivemos bochechas de vitela com cannelloni recheados de puré de aipo bola. A cozedura lenta deu a devida maciez à carne e o acompanhamento, tal como no caso do peixe, revelou-se uma conjugação acertada, com o sabor particular do aipo a contrastar bem com o adocicado da carne. De sobremesa veio um gaspacho de frutos vermelhos com lima, demasiado ácido para o meu gosto.

O serviço e a parte dos vinhos são dois aspectos que devem ser melhorados. No primeiro caso o tempo de espera entre pratos deixou algo a desejar bem como um ou outro desacerto. No segundo, gostaríamos que o menu de vinhos que acompanha o menu de degustação fosse algo mais interessante do que a banalidade da trilogia Grandjó, Planalto e Esteva que nos serviram. É verdade que a carta de vinhos contempla várias opções de escolha, nomeadamente a copo. No entanto, mesmo tendo em mente o objectivo de se conseguir oferecer um preço de conjunto atractivo, existem outras hipóteses mais estimulantes. Por último deveriam ter maior atenção à temperatura de serviço dos vinhos, bem como aos copos (existem no mercado outros mais adequados por custo semelhante).

Apesar destes desacertos, facilmente remediáveis, o Tágide é um local a ter em conta. É que não é só uma questão de vista. Há na cozinha (e na equipa responsável) um esforço para superar a mediania predominante nos locais com localização privilegiada.


Contactos: Largo da Academia Nacional de Belas Artes, 18 e 20 (Chiado), Lisboa. (http://www.restaurantetagide.com/)

Texto publicado originalmente no suplemento Outlook (Diário Económico) em 18 Julho 2009

domingo, 19 de julho de 2009

Histórias exemplares IV

Uma publicitária lamenta-se da dificuldade em conseguir ir ao El Bulli e de como gostaria de fazê-lo. Sugiro-lhe outros restaurantes espanhóis em que a cozinha de vanguarda é bem apresentada (Celler de Can Roca, El Poblet, etc) e onde é mais fácil arranjar mesa. Não parece muito interessada. "Eu assim ao restaurante mais diferente a que já fui foi a um em Paris onde era tudo às escuras e os empregados eram cegos", informa-me. "Também é uma experiência sensorial muito interessante. Nem me lembro do que comi, mas, realmente, aquilo é muito difícil de acertar".

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Apanha que é enófilo!

A notícia vem no Público de hoje: "A policia francesa deteve um homem suspeito de ter roubado mais de 500 garrafas de vinhos de elevada qualidade de restaurantes e de uma conhecida loja gourmet de Paris. Sob vigilância há meses, foi preso um dia depois de ter roubado 262 garrafas, no valor de 400 mil euros".

A propósito... onde anda o Rui Falcão? :)

Pub Grátis (Got Sushi?)






quinta-feira, 16 de julho de 2009

A crise emagreceu a cozinha dos chefes (Público)

15.07.2009

Com a crise a bater à porta da alta gastronomia, alguns dos maiores chefes portugueses resolveram fechar restaurantes de luxo e abrir espaços pequenos, despidos de formalidades.

A cozinha continua a ser gourmet mas, em vez de caviar e de preços exorbitantes, tornou-se mais modesta no custo e no paladar. Por Ana Rita Faria

Uns falam da crise económica e confessam que a troca de um restaurante de luxo por um espaço mais modesto foi uma questão de sobrevivência. Outros remetem para a saturação da prestigiada cozinha gourmet, que nunca chegou a conquistar verdadeiramente o público português. Seja que tipo de crise for, o resultado final foi idêntico: alguns dos mais conceituados chefes de cozinha nacionais deixaram ou fecharam os restaurantes de 100 euros por pessoa e abriram pequenos espaços, onde servem petiscos, pratos e menus de degustação a metade do preço. A cozinha continua a ter assinatura de chefe, mas não é bem a mesma. Miguel Castro e Silva foi o último a ceder à tendência, que conquistou já grandes cozinheiros como Vítor Sobral, Henrique Sá Pessoa, Ljubomir Stanisic e Fausto Airoldi.

Depois de 11 anos à frente de um dos primeiros restaurantes gourmet em Portugal, o Bull & Bear, no Porto, Miguel Castro e Silva sentiu que tinha chegado a hora de lançar-se numa cozinha mais informal. Divergências de objectivos com os outros sócios do restaurante portuense levaram este chefe de 48 anos a decidir, em Fevereiro, abandonar o espaço e também a cidade.

No final do mês, ainda sem dia certo, Miguel Castro e Silva abrirá em Lisboa um espaço de petiscos e refeições completas chamado Castro Elias, junto à Fundação Calouste Gulbenkian. Bacalhau à Brás, empanada de legumes, moelas, amêijoa, pezinhos de coentrada, costeletas em vinha de alho ou francesinhas são algumas das iguarias à disposição. O preço médio ronda os 15 euros, valor que não daria sequer para pagar metade de uma refeição no portuense Bull & Bear.

À semelhança de Vítor Sobral, que abriu também no mês passado um espaço de petiscos na capital, a Tasca da Esquina, Miguel Castro e Silva diz que a crise económica actual não teve influência na decisão de abrir o novo restaurante. "Em Portugal, nunca houve espaço para as catedrais da gastronomia europeias. Não é só uma questão de preço, mas de cultura", revela o cozinheiro. Vítor Sobral corrobora.

"Claro que a crise provoca uma retenção do consumo, que nos afecta, mas penso que a crise dos restaurantes gourmet não tem tanto a ver com a falta de dinheiro mas sim com a saturação do mercado: as pessoas estão cansadas de muitos pseudo-restaurantes gourmet e gastronómicos", conclui o chefe, de 42 anos. Mas há quem tenha uma história diferente para contar.

Gucci não é Zara

Todos os dias de manhã, Ljubomir Stanisic desloca-se ao mercado para comprar os alimentos que irá usar ao jantar na confecção do seu menu de degustação no restaurante 100 Maneiras, em pleno Bairro Alto. Já é tratado por tu pelas vendedoras da praça, mas não deixa de regatear os preços, pois sabe que "até parece mal se não o fizer". Uma rotina que, até há uns meses, não fazia parte do dia-a-dia deste chefe de cozinha jugoslavo de 31 anos.

No ano passado, Ljubomir Stanisic fechou o restaurante gourmet 100 Maneiras, em Cascais. "Não consegui tornar o espaço rentável", revela. A justificação é simples: "É difícil fazer cozinha de alta qualidade e alto preço, pois há muitos custos e despesas, ao nível do espaço, do número de empregados, do material usado (copos, talheres, toalhas)". Em Janeiro, abriu no centro de Lisboa o novo 100 Maneiras, bem mais pequeno, menos formal e luxuoso e, sobretudo, mais barato.

"Tive de adaptar-me por uma questão de sobrevivência, para continuar a ter o meu emprego", confessa. Os preços passaram de 70 ou 90 euros para um menu de degustação com 11 pratos que custa 30 euros. Mas desfaçam-se as ilusões. Apesar de o nome do restaurante e do cozinheiro serem os mesmos, a oferta é à medida do custo. "O gourmet low cost não existe", remata. Tal como não existe Gucci a preço de Zara.

"A ideia de que os chefes estão em saldos é errada, pois não estamos a servir a mesma coisa a metade do preço", defende Fausto Airoldi, que gere o restaurante Suite do Casino de Lisboa e o Spot São Luiz, na zona do Chiado. "A Zara e a H&M têm roupa com o mesmo corte que a Prada ou a Gucci, mas o tecido é diferente. Na cozinha, acontece a mesma coisa", realça o cozinheiro, de 45 anos.

Em vez de carabineiro, os chefes usam camarão normal. Em vez da lagosta ou do foie gras, a sardinha. "Como qualquer empresa, tivemos de tentar sobreviver à crise, adequando os nossos conceitos a um público mais vasto e conseguindo um compromisso de gourmet mais em conta", conclui.

Os chefes conseguem assim mais clientela, mas mantêm-se ao leme da criatividade. Basta olhar (ou saborear) algumas das propostas, como a entrada "Estendal do Bairro", servida no 100 Maneiras. Como o próprio nome sugere, os estendais de roupa do Bairro Alto serviram de inspiração para confeccionar a entrada de tripas de bacalhau fritas, presas a um mini-estendal por pequenas molas de roupa. Algo impensável no antigo 100 Maneiras de Cascais? Provavelmente. Mas as diferenças não ficam só pelos pratos servidos.

Custos pela metade

Quando abriu o Pragma (agora Suite), no Casino de Lisboa, Fausto Airoldi recorda-se bem do investimento realizado. Além de uma extensa (e cara) lista de vinhos, dos copos de cristal e da decoração luxuosa, o restaurante tinha (e tem ainda) um candeeiro que custou 30 mil euros. "Os que escolhi para o Spot São Luiz são do IKEA", compara. No espaço do Teatro São Luiz, que abriu em Novembro passado, o preço médio de uma refeição ronda os 15 euros, mas pode facilmente chegar aos 30 euros. Há hambúrgueres, croquetes de pato com compota de cerejas e filetes de dourada com açorda de camarão e coentros verdes ao vapor. Os cerca de 70 lugares costumam estar sempre ocupados.

Quem acumula também dois tipos diferentes de restaurantes é Vítor Sobral. O cozinheiro, de 42 anos, mantém o seu restaurante gourmet Terreiro do Paço (que está, contudo, encerrado temporariamente devido às obras na Praça do Comércio), mas decidiu abrir em Junho a Tasca da Esquina, um espaço em Campo de Ourique (Lisboa). O preço da refeição não ultrapassa geralmente os 12 euros e pode-se comer desde petiscos como codornizes com cerejas e morcela com maçã a pratos completos como raia cozida com azeite ou um simples bife à casa.

Habituado às despesas fixas da restauração de luxo, Vítor Sobral estima que tenha conseguido poupar bastante só nos gastos com o material usado no restaurante. "O único luxo que tenho na Tasca da Esquina é o guardanapo de pano", brinca o cozinheiro. As cartas do menu, "que geralmente nunca ficam por menos de 3000 ou 4000 euros num restaurante de gama alta", custaram pouco mais de 100 euros. "Tudo somado, é muito dinheiro e claro que, com uma estrutura de custos menor, dá para fazermos preços mais competitivos", salienta. O chefe planeia vir a abrir uma outra Tasca da Esquina na capital ou nos arredores, além de continuar a acalentar o desejo de ter uma marisqueira.

Segundo Miguel Castro e Silva, esta tendência de acumular dois espaços de restauração - um mais simples e outro de gama alta - sempre foi bastante comum no estrangeiro. "Em França, por exemplo, os grandes cozinheiros sempre tiveram um bistrot ao lado do restaurante de luxo, onde faziam uma cozinha mais informal, e geralmente era este espaço que permitia sustentar o mais caro." Foi isso que o chefe fez no Porto, quando acumulou a cozinha do Bull & Bear com o bar de petiscos no mesmo espaço, o BB Gourmet. "Este era mais rentável que o Bull & Bear e a verdade é que, no ano passado, conforme a crise ia batendo mais forte, o BB Gourmet facturava mais e o outro minguava", recorda.

Crise na cozinha gourmet

Desde que, em Fevereiro, abriu o restaurante Alma em Santos (Lisboa), Henrique Sá Pessoa não conhece o significado da palavra crise. Nos últimos meses, tem tido casa cheia todas as noites, mesmo com preços que, embora menores do que os do restaurante onde cozinhava anteriormente (o Panorama, do Hotel Sheraton), não descem abaixo dos 30 euros. Além de sempre ter tido vontade de criar um espaço próprio, este chefe de 32 anos decidiu abrir o Alma para fazer uma "cozinha menos elitista e espampanante" e que, por outro lado, estivesse de acordo com o contexto económico actual.

"Com a crise que se vive hoje em dia, a perspectiva de criação de um negócio tem de ser diferente", revela Henrique Sá Pessoa. O chefe considera que um restaurante de luxo não é, regra geral, um negócio rentável e que a crise fez vários cozinheiros perceberem que seria melhor abrir um restaurante mais pequeno usando a sua experiência e nome, que estivesse acessível a um público mais abrangente. "Não podemos contar só com os turistas, os executivos e o mercado apreciador de gourmet para nos sustentar", reforça.

Além disso, a crise veio também pôr a nu o exagero em que tinha caído a alta gastronomia. "Nos últimos anos, abriram centenas de restaurantes que se vendiam como gourmets e que se aproveitaram da publicidade à volta dos verdadeiros restaurantes do tipo para vender a preços exorbitantes", revela Sá Pessoa. A crise encarregou-se de fazer o público apertar os cintos e muitos desses restaurantes começaram a fechar. "Claro que houve espaços de qualidade que também foram apanhados", adianta. E mesmo os que subsistem não estão a enfrentar tempos fáceis.

A Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal estima que o mercado da restauração de gama alta esteja a viver uma quebra de 50 por cento, um valor acima da média do mercado em geral, que está a cair 30 por cento. "No sector, sobretudo de luxo, os preços estão 10 a 15 por cento abaixo do que seria necessário para assegurar a sua sustentabilidade", explica Mário Pereira Gonçalves, presidente da associação.

Luxo controlado

José Avillez sabe que a crise anda aí, mas ainda não bateu à porta do restaurante de luxo lisboeta Tavares Rico, onde é chefe de cozinha. Há algumas semanas, abriu um espaço de almoços rápidos em Santos, o JA (um trocadilho com as iniciais do seu nome e com a ideia de rapidez oferecida na confecção), mas é no Tavares que continua a estar a sua realização profissional e pessoal. Com os mesmos clientes e as mesmas receitas.

"No meio da tão aclamada crise, todos os meses deste ano foram melhores até agora do que os do ano passado e Maio foi mesmo o melhor mês dos nossos últimos anos", explica o chefe de 29 anos. Num restaurante onde servir 35 jantares por noite é "ter casa cheia, pagar as contas e ainda ganhar dinheiro", José Avillez recorda que o Tavares fechou Maio com uma média de 50 refeições diárias. "Não notámos menos movimento por causa da crise", realça. O mesmo pode dizer sobre o JA, em Santos.

Com menus de almoço que oscilam entre os seis e os 12 euros, o novo espaço do cozinheiro (que tem também um serviço de take-away) não tem pretensões de ser um restaurante gastronómico mas sim de oferecer a melhor comida ao melhor preço. "Não posso servir lavagante, mas posso oferecer um bom arroz com couve e farinheira, um bacalhau espiritual ou um frango com molho tailandês", exemplifica.

Contudo, mesmo no Tavares, onde o lavagante tem entrada permitida, a crise está a ter algum impacto, ao ditar um maior controlo dos custos. "Esta crise obrigou os gestores, em todo o tipo de empresas, a repensar as suas despesas", destaca. Hoje, o cuidado de desligar o ar condicionado quando a sala já está suficiente fresca é maior, bem como o de usar folhas de rascunho sempre que é necessário imprimir alguma coisa. E até o papel de cozinha sofreu com o controlo mais apertado.

Antes, a cozinha do Tavares Rico tinha papel de mãos ziguezague e rolos de cozinha. "Mas, um dia, faltaram os rolos e tivemos de usar só o outro papel", conta José Avillez. O chefe resolveu analisar os custos de cada tipo de papel e percebeu que o rolo de cozinha saía dez vezes mais caro do que o papel ziguezague. O primeiro acabou por ser eliminado. "Um restaurante, sobretudo de luxo, tem de ser cada vez mais uma máquina afinada de gestão, devido aos custos todos que tem", explica José Avillez. E, enquanto a crise se mantém afastada, o melhor mesmo é perceber que a diferença pode residir em muitos e pequenos pormenores.


Nota: a reportagem foi retirada da edição pdf do Público que está neste momento disponível a não assinantes. Faremos aqui o link para a mesma caso o jornal resolva publicá-la na sua edição online.

quarta-feira, 15 de julho de 2009

Gucci não é Zara

"A ideia que os chefes estão em saldos é errada. pois não estamos a servir a mesma coisa por metade do preço. A Zara e a H&M têm roupa com o mesmo corte que a Prada ou a Cucci, mas o tecido é diferente. Na cozinha acontece a mesma coisa" - Fausto Airoldi ao Público de hoje, numa interessante reportagem de Ana Rita Faria, intitulada: "A crise emagreceu a cozinha dos chefes".

terça-feira, 14 de julho de 2009

Entrevista de J. Avillez ao Outlook (Diário Económico)

Tem 29 anos e um percurso de fazer inveja. José Avillez ganhou prémios, mas garante que não olha para eles para cultivar o ego. Começou há 9 anos, a conselho de Maria de Lourdes Modesto, fundou um restaurante, uma empresa e está à frente do mais antigo restaurante português a praticar uma cozinha que os especialistas apostam que vai ganhar pelo menos uma estrela Michelin. Não Comenta. Diz apenas que nunca está satisfeito, que é um perfeccionista cheio de planos e que a sua vida não chega para os realizar

Li os seus diários de estágio que escreveu enquanto esteve a estagiar no restaurante El Bulli, de Ferrán Adriá. Senti o nervosismo e a ansiedade de um aluno no primeiro dia de aulas. Esteve lá há quanto tempo?

Sim. Faz dois anos, agora… É Aquele misto de curiosidade e ao mesmo tempo medo… Quando se faz uma coisa completamente diferente daquilo a que se está habituado, mesmo que seja dentro da nossa área é sempre…O entrar na infantil é um dia importante, o entrar na primária é um dia importante, ir para o liceu é também um dia importante, de mistério, algo de novo que vamos encontrar. O entrar na universidade. Sempre que há uma mudança grande, uma entrada em algo de desconhecido… Entrar no melhor restaurante do mundo com os mistérios que estão ou que poderiam estar escondidos por trás de uma cozinha dessas… acho que foi um bocadinho… Um misto de nervoso.

E ansiedade?

Sim. Sem saber o que ia encontrar. As opiniões dividiam-se, uns diziam: “só vais arranjar espinafres ou ervilhas, outros diziam que não.

Não fazia a menor ideia do que ia fazer?

Não. Tinha uma expectativa muito alta e foi superada. Foi mesmo. Tem defeitos, como tudo na vida, mas consegui tirar as coisas boas.

Diz também neste diário que a certa altura se benzeu, tal era o caminho que tinha a percorrer. Benzeu-se porquê?

Era o caminho mesmo físico da cidade até ao restaurante, que é um precipício enorme do lado direito. E aí benzi-me porque o caminho são sete quilómetros com curvas e contra-curvas sempre com um precipício do lado direito.

Fazia isso todos os dias?

Fazia isso todos os dias, para ir e voltar à uma e meia da manhã, sempre de carro, cansadíssimo. O precipício era do lado esquerdo porque vínhamos na mão contrária. De qualquer forma um dos avisos que eles davam sempre aos estagiários era que nunca tinha lá morrido ninguém e eles não queriam que eu fosse o primeiro. Por isso insistiram várias vezes durante o estágio para termos cuidado a sair de lá, que era uma estrada muito perigosa. Acho que foi nesse sentido que eu digo que me benzi.

É religioso?

Sou. Católico.

E pediu a protecção divina.

Sim.

Diz também que não sabe muito bem como é que foi lá parar, mas que era um sonho.

Sim, era um sonho. Eu tenho mil sonhos e todos os dias nasce um. Eu sonho a mais de mil, o que me cansa um bocado mas também me faz crescer . Mas não sou daqueles que têm sonhos que duram anos: um dia vou ser…

Não adia os sonhos?

São sonhados e felizmente têm sido vividos muito rapidamente.

Isso não o assusta?

Assusta.

Aos 29 anos…

Assusta, assusta. Eu às vezes digo à minha irmã, e hoje em dia à minha namorada: “se eu te disser que vou fazer mais não-sei-o-quê não me deixes”. Porque eu sou muito de impulsos.

Viver depressa demais, pode assustar?

Sim. E eu vivo depressa de mais. Sinto que os ultimo três, quatro anos da minha vida não me lembro deles. É assustador. Passaram e eu quase não me lembro.

Mas foram anos decisivos.

Foram anos decisivos, de tanto trabalho que as pessoas que conheci nessa altura, olho para elas e não sei se as conheci mesmo. É quase um sonho. De repente, em oito anos de cozinha…

Porque passaram só oito anos.

Passaram oito anos. Não é que eu tenha passado a algum topo, que seja melhor que os outros, não tem nada a ver com isso. Tem a ver com o que já fiz

ABC um dos mais conceituados críticos espanhóis considera-o melhor cozinheiro de Lisboa.

Eles podem dizer, eu não.

Mas como é que olha este tipo de criticas?

Eu acho que é importante. Obviamente não vou mentir e dizer que não fico contente. É importante para o negócio que é também uma das coisas importantes, enquanto cozinheiro e chefe de cozinha, restaurador. E é importante para o ego e para a auto-confiança e continuar a trabalhar e ser melhor. Acho, e isto sigo o que Armando Cortez, o actor, falecido que disse uma vez a um actor da minha idade – o Pedro Granger: “nunca leias, ou nunca oiças as críticas que te fazem porque se forem muito boas, ficas convencido, se forem más ficas triste e garanto-te que 90% das vezes são mentira. Ou, pelo menos, não são 100% verdade”. Eu sigo, às vezes isto.

Consegue seguir?

Não.

A tentação é maior?

A tentação é maior. Mas, na minha cabeça quando são piores tento mentalizar-me disto. Quando são muito boas, também tento. Mas eu acho que tenho a felicidade de ter conseguido manter a humildade. Porque aprendo todos os dias. É a única coisa de que eu tenho certeza. Todos os dias de manhã, quando saio da cama, mais ou menos cansado – tenho andado muito cansado, a mil à hora – tenho a certeza de que vou aprender alguma coisa. Por mais que nesse dia seja incapaz de perceber o que aprendi, um dia mais tarde vou saber que nesse dia, quase anónimo, quase igual aos outros, aprendi qualquer coisa. Numa conversa, com um estagiário de 15 anos que me diga qualquer coisa…há mil maneiras de aprender com as pessoas. A maior parte com as pessoas. Às vezes é entrar num site e ver uma coisa diferente. Sinto imenso isso. Sinto uma coisa que acho que é próprio da evolução de tudo. Eu sempre fiz muito desporto, hoje em dia não tenho muito tempo.

O que fez?

Joguei râguebi muitos anos. Eu sei que não parece. Depois fiz capoeira muitos anos também. E é diferente de trabalhar em equipa ou trabalhar sozinho. Capoeira é muito sozinho.

Na cozinha trabalha-se em equipa.

Em equipa e trabalha-se sozinho, também. Trabalha-se em equipa, obviamente tudo se faz em equipa, mas muitas vezes no trabalho da criatividade, da introspecção, está-se sozinho. Acaba por ser, às vezes, um trabalho um bocadinho solitário.

Quando começou? Não foi muito cedo, pois não?

Foi há 9 anos. Eu tinha 20 anos quando decidi.

E o curso quase terminado.

Estava no fim do terceiro ano do curso. Depois no quarto ano já estagiei na Fortaleza do Guincho, já fiz a tese.

Sobre cozinha tradicional portuguesa?

Cozinha portuguesa, estudo de marketing. E eu lembro-me de ter comprado um livro de cozinha específico, “Culinary Artistry”, que era um livro americano. Eu juro, eu olhava para aquilo e não percebia nada do livro. Não me fazia sentido nenhum. E depois nunca mais peguei no livro, ficou lá encostado. Daqueles que eu penso “que dinheiro mais mal empregue”. As coisas vão evoluindo mais, eu vou aprendendo e um dia pego no livro e penso assim: “Este livro é genial”. E isso tem vindo sempre a acontecer. Agora se calhar já não há assim um livro que eu diga: “não percebo nada”. Obviamente a pessoa depois começa a criar uma cultura gastronómica e um conhecimento mais generalizado mas ao princípio isso acontece muito. Depois a formação faz isso mesmo, traz-nos surpresas e, de repente, há uma técnica inovadora que nunca experimentou e aquilo entra e passa a fazer parte da nossa vida. E os pensamentos do passado, de estranheza, passam a ser uma coisa do dia-a-dia. É engraçado isso, a sensação de se estar sempre a aprender. O El Bulli foi um misto disso.

O El Bulli foram três degraus nessa escala?

No primeiro dia ainda estava cá, porque tinha acabado de abrir uma empresa, tinha imensas responsabilidades, não só culinárias como financeiras, recursos humanos etc., estava mesmo numa fase complicada e só fui porque era o El Bulli, estava marcado.

Nunca entendeu essa ida como um risco?

Sim mas assumi-o. Nunca pensei que ia mudar a minha vida como mudou, porque mudou profundamente, mas sabia que se não fosse me arrependeria para o resto da minha vida e mudaria ainda mais profundamente. Fui sabendo que iria interromper o projecto durante alguns meses. E fui com 15 pessoas a trabalhar para nós cá, com algumas dezenas de centenas de euros de ordenados. Lembro o primeiro dia em que lá estive fiz logo parte do serviço. Ao contrário do que alguns diziam, que eu só ia ficar a arranjar ervilhas, estava a empratar no melhor restaurante do mundo na minha primeira noite de estágio.

Empratar é uma coisa que gosta de fazer?

Gosto. Acho que todos os chefes gostam. É como um pintor, não faz sentido misturar as cores todas e depois não pintar o quadro. Nós é o cozinhar e depois pôr no prato. Eu defendo muito e os mandamentos que fiz na cozinha no Tavares, o mais importante é o sabor, mas o lado estético é muito importante, desde que o sabor seja o mais importante. Se não o acto estético não é nada importante.

Os olhos comem mas o paladar…

Se for péssimo mais vale estar quieto e tudo o que lá está no prato tem razão de ser. Não ponho uma folha de salsa para dar o toque verde se essa folha de salsa não tiver alguma relação. E até porque cada vez mais gosto dos pratos mais… com umas cores não tão vivas. A arte, isto é muito pessoal, mas se tenho um prato que não foge muito do branco, do cinzento e de um beije é o meu prato, em termos visuais, o mais bonito de todos.

Nada de garridices.

É. Às vezes, noutros pratos há, mas não sou nada de por a pétala de rosa para dar aquela cor. Prefiro termos um prato de lagostim que era tudo branco, cor-de-rosa muito claro do lagostim. Era aquilo não precisava de mais nada. Se calhar outras pessoas teriam tendência para pegar e por outra coisa. Isso estragaria a beleza natural.

É a sua assinatura. Sente que está no auge?

(Silêncio) No El Bulli, meia-noite, meia noite e meia, acaba-se o serviço. Eu, habituado a mandar em mim mesmo, subo ao balneário e vou ver o telemóvel, ver se tinha mensagens, chamadas, porque ainda cá estava. Entra um sub-chefe que tinha ido à casa de banho e deu logo cabo de mim. Quem é que me tinha dado autorização, etc. Chamou os estagiários todos e depois à frente de todos disse que este era um péssimo exemplo, nunca pode acontecer. Entrei com o pé contrário. E as primeiras três semanas fizeram-me a vida quase num inferno. Eu não reparo isso aí para ter um bocadinho mais de glamour. E depois, no fim, até o chefe de cozinha veio dizer-me…

Ao fim de três meses?

No fim de tudo, dos três meses, veio dizer: “foste um dos melhores estagiários”. Eles não dizem em termos técnicos “nós fizemos-te a vida negra ao princípio, tu aguentaste, deste a volta por cima, acabaste na equipa de criatividade, fizeste fotografias com o Adriá, mudamos todos tão radicalmente a opinião acerca de ti.” Não sei o que aconteceu. Eu engoli em seco muitas vezes. Ao fim de um mês lá já tinha aprendido tudo o que tinham ensinado lá e tive que ir buscar um gole de humildade. E tenho a certeza que se me tivesse vindo embora, dois dias mais cedo que seja, o não chegar ao fim, as coisas não teriam sentido. Porque isto é um ciclo, quando eu, no terceiro ano da faculdade, decidi que queria ser cozinheiro, a única coisa que eu tinha a certeza era que ia acabar o curso.

Deixar as coisas a meio não é consigo?

Não é comigo. Isto diz-se até nos negócios, para um gestor saber que desistir de uma coisa não é deixar a meio, é porque se esgotou um ciclo e chegou ao fim. Eu sabia que lá ia estar três meses e eram três meses que lá ia estar, nem que estivesse amarrado a um poste e a baterem-me. Sabia que ia estar quatro anos na Universidade; era quilo. Eu tenho um sonho muitas vezes, não sei o que não estou a conseguir resolver na minha vida, que me falta uma disciplina e acordo a pensar que não estudei para o exame. Não sei o que é, exactamente, mas é alguma coisa que me falta acabar.

É uma coisa que sente, neste momento?

Não sinto isso. É uma coisa que sonho todos os meses. Agora, já há três meses que não sonho isso, mas durante muitos anos, três ou quatro anos, sonho isso uma vez por mês, que é: “tenho de estudar, tenho que fazer não sei o quê porque me falta uma disciplina”. Parece que estou outra vez na escola e que não acabei alguma coisa e que vou ser posto à prova. Tem com certeza a ver com o ser posto á prova todos os dias no meu trabalho. Poderá ter a ver com isso. Tem a ver também com eu não gostar de deixar nada por acabar. Completar o ciclo que é importante.

Este ciclo Tavares começou há um ano e meio.

Há um ano e meio. É mais fácil porque não tem um tempo definido. Está no princípio.

Não tem um tempo definido até porque ser tornou um dos sócios do restaurante.

E mesmo não sendo, e tenho uma quota mais pequena do que os outros sócios, foi uma coisa que eu sempre disse aos donos do restaurante. Isto não faz sentido se não for um negócio, ou pelo menos para pagar os custos. Todos os meses, tirar dinheiro do bolso para por aqui assusta-me muito porque quer dizer que o negócio está sempre incerto. Nem o homem mais rico do mundo, e principalmente esses, gostam de perder dinheiro. E se alguns restauradores, alguns chefes de cozinha, têm um negócio, um restaurante que não dá dinheiro, é porque são uns artistas.

Esse lado universitário ajudou-o na gestão?

Ajudou. Apesar de toda a gente dizer que eu me formei em Marketing. Eu às vezes também digo. O meu curso é de Comunicação Empresarial. Mas com uma base de gestão, com uma base de Marketing, uma base de Publicidade. Podia ter sido mil coisas até que fui cozinheiro quando saí do curso.

Mas essa apetência pela cozinha não surgiu há nove anos. Imagino que tenha surgido há muito mais tempo.

Surgiu há muito mais tempo. Eu, com dez anos, é daquelas histórias…

Fazia experiências?

Fazia bolos com a minha irmã, vendíamos para fora. Hoje em dia não gosto muito de fazer doces, até.

Não? Porquê?

Não sei muito bem. Por duas razões: gosto pouco de comer doces, os doces que eu gosto são pouco doces.

Tais como?

(ri) Um é um péssimo exemplo, até, que é um doce que eu adoro – bem feito, então! – que é arroz doce. Mas o que eu gosto é de fruta ou coisas com sorvete, muito suaves os doces. Uma vez uma frase de um pasteleiro, que é meu amigo que dizia que uma sobremesa tem que ser como um vinho: tem que ter a acidez e a doçura equilibrada e eu penso muito nisso. E as nossas sobremesas tradicionais não são assim e estão desactualizadas ou mesmo erradas logo à nascença. Isso é uma razão e depois acho que a cozinha dá mais liberdade na criação. A pastelaria obriga-nos muito a seguir receitas. No bolo de chocolate eu não posso ir acrescentando um pouco mais de farinha e vou provando e vai para o forno. Vai tudo abaixo, o bolo fica uma porcaria. É preciso mais alma, ou se calhar na cozinha; gastamos mais a nossa alma na cozinha. Estou a fazer uns pezinhos de coentrada, desde o arranjar, cozer, o toque final de na exactidão dos coentros e do alho. Estou ali a cozinhar sem receitas, estou a cozinhar de paladar, que é para mim o mais importante. É uma das escolas. A escola francesa ainda ensina a cozinhar assim, a escola espanhola não.

E como é que se aprende a respeitar o paladar?

Aprende-se a comer, primeiro. É muito importante. Aprende-se o que é bom e o que é mau. Os padrões da subjectividade que existe.

O que pode ser um bom paladar para mim, pode ser péssimo para si. Ou não?

Eu acho que o bom e o péssimo estão muito afastados. O que pode ser excelente paladar para mim, pode ser…

Há quem não suporte pezinhos, por exemplo.

Mas isso são coisas diferentes. Acho que tem a ver com o não gostar de um prato. Eu posso fazer o melhor prato do mundo se você não gostar de pezinhos, não vai gostar dos meus. Isto tem de ser sempre na linha do que as pessoas gostam. Apesar de eu ter uns pezinhos de porco aqui que eu adoro e apesar de as pessoas provarem e dizerem: “eu nunca tinha provado pezinhos de porco e estes gostei imenso. Isto do paladar… eu não vou obrigar ninguém. Eu lembro-me, quando era pequeno, odiava coentros. Hoje em dia sou quase coentro-dependente em muitas coisas porque nós temos, de facto, a tradição de coentros em muitos pratos no Alentejo.

O paladar educa-se?

Educa-se, claramente. Desde pequenino. Eu tive a sorte de comer sempre bem em casa.

Comia-se bem em sua casa.

Comia-se bem em casa. Em casa dos meus avós também. Íamos sempre almoçar lá aos domingos, cozinha mais tradicional. Não vou dizer que tenho as memórias do campo. Não. Nasci já na cidade, em Cascais, não vou dizer que era a minha avó que cozinhava e a minha mãe…a minha mãe não sabe estrelar um ovo. Por isso adorava ter essas memórias, mas hoje em dia as coisas já não acontecem assim. Inspirado na minha avó que fazia aquilo…Não. Fazia coisas boas, mas…

Maria de Lurdes Modesto teve muita influência na sua decisão. Ela fala em “ter mão” para a cozinha.

Eu acho que isso acontece na cozinha, como todos os trabalhos, vocações, as artes, o que seja, a pessoa tem que ter algo inato. A cozinha tem que ter. Eu crio pratos sem convencimento nenhum, sem provar nenhum. Só de cabeça tenho os sabores, o paladar mental de 20 produtos. Mais, mas no caso de querer criar um prato que anda à volta de 20 produtos, 10 produtos, e consigo pensar e à primeira o prato sai a 90% do que eu quero. Depois tem ali 10% de correcções depois de se fazer duas, três vezes o prato. Acho que se assim não fosse, se a pessoa tivesse uma amnésia constante de paladar para se criar um prato seriam dias. O Adriá nunca conseguiria fazer o trabalho que fez. Com o paladar mental faz saber que isto cruza bem com aquilo, no meu ver. Aí isso é o que se educa mais e o que é mais polémico. Todos os pratos são questionados, nesse sentido. Para quê? Para nós termos a certeza de que todos os pratos fazem sentido naquela linha de trabalho. Mas isto, ao mesmo tempo, tem uma coisa muito pensada, estudada e era o que eu achava que ia encontrar no El Bulli, e encontrei, mas isto se calhar são 30%. Eu achei que ia encontrar um laboratório à séria, com engenheiros, com químicos e não.

É mais próximo da normalidade do que as pessoas pensam?

É. Principalmente uma coisa: faz-se tudo com muito amor, faz-se tudo e a intuição funciona muito. Como funciona aqui na minha cozinha. Há investigação por detrás, há um grande trabalho de conhecimento dos produtos, de técnicas, de cozeduras, etc, mas o que faz a diferença, o que nos distingue, o que me distingue a mim do Vítor Sobral, do Baena, do Adriá, de quem quer que seja é a intuição. É a partir dessa altura que a pessoa começa a criar a sua própria cozinha, ou a reinventar. Inventar é difícil, criar também é forte mas pode ser reinventar, ou recriar o que quer que seja.

Acha impossível inventar em cozinha?

Não acho impossível. Acho que é perigoso. As invenções são coisas perigosas. O Adriá foi talvez dos poucos que inventou em cozinha. Mas é difícil inventar.

A base da sua cozinha, aqui, é a cozinha tradicional portuguesa e depois…

Não sei. Eu também tenho alguma dificuldade em rotular as coisas que faço.

Diz que a sua cozinha é uma cozinha aparentemente simples.

É de uma simplicidade aparente. É a pessoa chegar à mesa e o prato chega à mesa e é aquilo e aquilo que as pessoas vão comer. Por mais que às vezes possam estar transformados, mas é aquilo, o sabor. E a brincadeira do aparentemente simples é…

Porque é que diz que é uma brincadeira?

Brincadeira porque as pessoas: é simples, ou é complicado? O aparentemente simples é um bocadinho… O prato de cordeiro que chega à mesa é puré de grão com abóbora e cordeiro. É um prato que é cozido de grão, que demora muito tempo a fazer – um prato típico alentejano – o cordeiro primeiro que o consigamos servir demora 72 horas até ir para a mesa porque chega inteiro, é todo limpo, deixa-se a marinar de um dia para o outro, arranja-se, é cozinhado a vácuo 24 horas, deixa-se a descansar outras 24 horas. O mínimo 72 horas antes de estar na mesa do cliente. E quando está na mesa do cliente é aquilo – é cordeiro. E a pessoa pensa, grande cordeiro que eu comi. E é isso que eu quero que a pessoa pense. Não quero que pense que grande trabalhão que o chefe deve ter tido a fazer isto. Isso não me serve para nada. Serve é o prazer que a pessoa tirou naquele momento.

Costuma espreitar atrás da porta?

Espreito imenso. Cada vez espreito mais. Estou a ficar viciado. Ainda no outro dia dizia: “adorava montar umas câmaras por detrás destes espelhos em segredo para ver a cara das pessoas.” Porque a sensação, não sei se viu o filme, “A Festa de Babette”, a minha avó chamava-se Babette, por isso eu tenho um lado emocional ligado ao livro – mais ao livro do que do filme – representa bem porque a pessoa consegue ver as caras. E é fantástico ver as caras dos clientes quando estão a gostar de qualquer coisa. Por exemplo, quando estão duas pessoas a comer, calam-se olham para o prato, o empregado explica, não querem estragar a parte estética

Primeiro a parte estética funciona.

Funciona. Há um impacto, olham um para o outro, riem, estão um bocadinho quase intimidados com o prato, principalmente se são menus de degustação e a pessoa pôr-se nas mãos do chefe é…

Entregar-se.

Entregar-se.

Há um princípio da confiança.

É. O prato que eu tinha que vai mudar hoje, o primeiro da degustação, era a Transparência Marinha, é inspirado na escotilha de um submarino que eu, quando tinha oportunidade e os meus colegas na sala explicavam isso, simbolizava na minha cabeça o estar fechado dentro submarino a olhar para a liberdade do fundo do mar. O desconhecido, o mistério, mas ao mesmo tempo, a liberdade. E o prato chegava à mesa e a pessoa pegava nos talheres e a primeira garfada era sair desse submarino e entrar na viagem que depois percorria vários pontos durante o menu de degustação - no desassossego, como no “Livro do Desassossego”, do Fernando Pessoa. Mas espreito, é um vicio horrível. Ainda por cima estas portas mal se abrem um bocadinho à noite, as luzes estão muito mais baixas, vem uma luz branca da cozinha por isso às vezes há clientes que olham e eu fecho. Mas espreito para ver isso mesmo, a reacção das pessoas, a primeira garfada e as caras que fazem. Para nós o mais importante, para os cozinheiros, é o que conseguimos transmitir a quem está a comer mais, muito mais do que alimentar, é dar prazer.

Já alguém, alguma vez chegou ao pé de si e disse que não gostou?

Não gostou nada, nunca aconteceu.

Mas próximo disso?

Já tive pessoas que me disseram: “Não gostei nada deste salmonete, sabe demasiado a mar”. Eu acho que é um elogio. É uma crítica que vem da pessoa – não gostou – eu oiço como um elogio, porque deve estar habituado a comer com molhos que disfarçavam o sabor do peixe. Há pessoas a dizer está salgado, ou não-sei-o-quê. Tive no outro dia um comentário de uma pessoa importante da nossa praça, um gestor conhecido que me disse “se isto é uma sopa de cação, eu sou um sapo”. (ri)

E estamos aqui há mais de meia-hora a falar de pratos que são tipicamente portugueses: sopa de cação, pezinhos de coentrada, o borrego.

Eu tenho uma memória, como todos nós temos, umas mais ricas outras menos ricas, tenho uma memória do passado. Tenho até memória do que não vivi, que a alma de ser ou não ser português faz-nos com que fiquemos com uma memória, não sei se é das pessoas, dos cheiros, das ruas, tenho memórias de sabores que se calhar nunca provei.

Quantas vezes muda a ementa?

Não tenho nada fixo. Eu dantes queria fazer um bocadinho como se faz nos restaurantes mais tradicionais franceses, por estação, de três em três meses. Primeiro, as estações estão cada vez mais indefinidas. Depois, se começa a aparecer uma cereja agora, há outros produtos de verão que só aparecem mais à frente – o figo. Por isso mudar uma carta toda porque entra o verão, não acontece. Tenho mudado, mudo três pratos; a semana passada ou há duas semanas mudei três, há uns que vão ficando, há um ou outro que vão ficando porque as pessoas vêm para comer aquele prato e o público vai mandando também.

Mas estávamos a falar do…

Eu acho que há. E atenção que isto é importante de dizer, eu sou incapaz de escrever bacalhau á Brás e servir uma coisa que não seja exactamente bacalhau à Brás.

Que é um dos pratos que serve agora aqui.

É um dos pratos que sirvo agora. Eu tenho a carne de porco com amêijoas à Tavares, bem sublinhado à Tavares, no sentido que é uma interpretação nossa da Carne de Porco com Amêijoas. Lembro-me perfeitamente de uma viagem que fiz ao Brasil, Campos de Jordão, e estava a comer caldo verde. E pareceu uma couve lombarda em juliana, que não tem nada a ver, com uma salsicha alemã cortada às rodelas, como se fosse chouriço. Isto não é possível. Não podemos. Depois vinha, caldo verde, receita tradicional portuguesa. Isto é assassinar a nossa cozinha. Por isso eu aqui tenho esta preocupação. É a mesma coisa que chegar ao pé de um poema de Fernando Pessoa, que eu adoro, e dizer estamos no século XXI esta frase não faz sentido nenhum vou mudar-lhe esta virgula, porque isto assim até faz mais sentido, ele na altura devia estar bêbado. Não faz sentido. Eu podia pôr “o menino de sua mãe”, mas depois por José Avillez. Eu acho que é muito importante, sempre que se faz essas mudanças, acusar.

Qual é o limite?

Não há. É o limite do gosto, da explicação. O limite é explicar. É expor, sobretudo aos estrangeiros: olhe isto são sabores portugueses mas estão transformados. O perigo aqui é chamar as coisas; eu pus sopa de cação com isto e isto e isto. Porque a sopa de cação, a base, eu faço-a exactamente como na receita tradicional. E o cação a diferença é que em vez de o cozinhar, esquecer-me dele como se faz aí, cozinho-o a vácuo que fica com o ponto certo de cozedura. Há cerca de dez variedades de cação diferentes e ele chega-nos cá sem pele e nós não conseguimos definir se é do bom ou do mau. E quando é do mau pode-se fazer a melhor cozedura do mundo e ele está rijo.

Costuma ir ao mercado?

Vou só quando me falham os fornecedores, sinceramente.

Não é uma coisa de que goste? 
 
 


Adoro, adoro.

Não há tempo?

Não há tempo. Saio da cama às oito da manhã e volto à uma da manhã todos os dias, praticamente. Ao domingo safo-me disso, de resto é sempre assim. É muito difícil. Não há mesmo tempo.

O que é que tem no seu frigorifico, em casa?

(ri) A minha namorada cozinha para mim. Tenho poucas coisas no meu frigorífico em casa. Mas se tivesse mais tempo o que é que eu teria no meu frigorífico? Eu adoro comer, a Maria de Lurdes Modesto diz sempre “vocês chefes gostam de fazer isto e aquilo, mas o que gostam é de comer a comida das vossas mães, ou das vossas avós”. É um bocadinho verdade. O que me apetece depois é comer comida mais tradicional.

Acha que esta cozinha cansa?

Cansa. Eu acho que principalmente faz-nos pensar. E há tanta coisa na vida que nos faz pensar já, que às vezes nós queremos é comer encostados a um balcão, um prego, ou um bife. Porque é aquilo, melhor ou pior, é um bofe com um ovo a cavalo. Alimenta-nos e nós temos que distinguir a alimentação, a simples necessidade de saciar, do entretenimento. Porque este tipo de cozinha é uma viagem, ou nós pretendemos que seja.

É uma coisa mais próxima da arte?

Não me considero artista.

Não se considera artista?

Às vezes quando dizem: “Oh artista!” Mas não.

É vaidoso?

Tenho dias mais vaidosos do que outros.

Quando lhe dizem, por exemplo, que este será um próximo estrela Michelin, como gere essa expectativa?

Há dias diziam-me: “há aí pessoas que estão convictas de que vais ganhar as duas estrelas de uma vez”. Eu dizia-lhes: “Eu espero que não. Porque vou ficar a primeira meia-hora muito contente e no dia a seguir não vou ter coragem de sair da cama”. No sentido do peso da responsabilidade, do impacto. Não sei se leu alguns comentários. Dividiam-se entre 50/50 ou 60/40 mas havia pessoas que diziam o Avillez no Tavares, que disparate vai destruir aquilo. Agora, subimos 30 a 40% das vendas, e as críticas não podiam ser melhores. Por isso algumas pessoas voltaram atrás e dizem dou o braço a torcer.

A crítica ajuda?

Acho que sim.

Influencia?

A crítica do cliente influencia.

E a que se escreve?

A que se escreve com responsabilidade também. Há quem escreva sem responsabilidade. Por exemplo, nos blogues há quem escreva com responsabilidade e há quem por trás de um computador, de um teclado, se faça passar por quem não é e de repente ganha poder. Toda a gente tem direito a opinião, as pessoas não têm é que dar valor a toda a opinião. Eu posso chegar, não percebo nada de teatro, entro num blogue e falo de uma peça que fui ver e destruo a peça. Disse-me um cliente no outro dia que andava a circular na internet uma factura aqui do restaurante que dizia “pastel de nata: 15 euros“ Porquê? Porque é uma sobremesa que nós temos e todas as sobremesas custam 15 euros. E quando eu cheguei aqui estavam a 18, baixei os preços para 15. Eu acho que deve ter sido numa revista que saiu no SOL onde saiu uma critica em que eles têm por hábito levarem a factura e fazerem uma fotocópia. Diziam que era ridículo, uma roubalheira, no Tavares um pastel de nata custar 15 euros. O deturpar da realidade é muito grave. Porque aquilo não é verdade. Uma sobremesa que tem um gelado, que tem um pastel de nata que tem o trabalho que é servido não-sei-o-quê, quer dizer….

Pode parecer escandaloso para muita gente um menu custar 75 ou 95 euros. É fácil fazer demagogia com o preço.

Claro. As pessoas perguntam-me: “aquilo é muito caro, não?” E eu digo que é caro. E dizem: “quê, aí uns 50 euros por pessoa?”. É mais. “É mais? Nunca gastei mais de 10 euros a comer”. Eu percebo.

Isto não é feito para estas pessoas?

Isto não é feito para essa pessoas, efectivamente. Às vezes vejo aqui pessoas que querem vir ao Tavares e pedem um bacalhau à Brás a dividir. Eu juro que se pudesse lhes oferecia um menu de degustação. Porque acho péssimo também, e na minha visão, é muito limitador não poder dar prazer a essas pessoa porque não podem gastar mais.

Porque nem é pelo dinheiro que se ganha paladar, não é?

Exactamente. Há pessoas que podem ter uma sensibilidade. Depois o treino também ajuda. Eu posso ter uma sensibilidade para pintura mas se não tiver visto três quadros na vida de nenhum pintor de jeito nunca vou conseguir identificar uma coisa boa e uma coisa má. Ou pelo menos, terei muito mais dificuldade. Por isso os grandes gourmet do mundo inteiro são pessoas com algumas possibilidades para gastar dinheiro. Mais até do que outros, a nível de prioridades porque gostam mais de gastar dinheiro a comer do que a comprar fatos, ou o que seja.

Vê-se a fazer isso?

O meu sonho é parar um ano e viajar pela lista dos melhores 50 restaurantes do mundo. É um dos meus sonhos que estou a adiar porque não posso parar um ano. Nem pensar. Nem tenho dinheiro para fazer isso. Mas era. Se há coisa que eu goste tanto como de cozinheiro é de comer. Assim, não é comer para enfardar.

Qual é o seu prato preferido?

Bacalhau à Brás. É daqueles que se eu comesse três vezes por semana não me cansava. Gosto de outros. Depois tenho assim umas surpresas. Tenho uma lista dos dez melhores pratos que comi na minha vida, quase todos são de cozinha tradicional portuguesa.

É a que prefere?

É. Depois, obviamente, em Portugal há outras. Agora tenho ido menos ao Aya, se calhar pelo Yoshitake ter morrido, pelo preconceito, mas era dos poucos restaurantes que me surpreendia.

O Aya.

O Aya. Na minha profissão o que é se procura? Alimentação certa. Vou àqueles sítios onde sei que vou comer aquilo muito bom, ou ter surpresa. Passamos uma fase com poucas surpresas em Portugal. Ontem, por exemplo, fui jantar ao Vítor Sobral. Gostei muito. E o sítio é muito giro, gostei imenso. E o Aya durante uma altura era o único sitio em que eu ia e que me surpreendia em termos de paladar. Não tinha pratos inovadores mas comia umas saladinhas que ele fazia e surpreendia-me. De resto, poucos sítios me surpreendiam O Baena quando estava no activo surpreendia-me com a cozinha criativa que fazia. De resto, pouco mais.

O que é isso da cozinha criativa?

Na versão Baena é provocatória. Temos estilos completamente diferentes. Ele esteve aqui a jantar há uma semana. O Miguel Castro e Silva esteve aqui a jantar há três dias. E é muito bom trocar impressões, trocar ideias.

O que é que acha, por exemplo, do que alguns dos seus colegas estão a fazer? Estou a lembrar-me do 100 Maneiras e do Alma

Acho óptimo.

Como é que se pode chamar a essa cozinha?

Não sei. Como lhe disse sou péssimo a dar rótulos. Cada cliente tem que chamar o que quiser.

Chamar alta-cozinha mas a um preço amigo?

Eu acho que não se faz alta-cozinha com duas pessoas na cozinha. É importante distinguir com o risco de as pessoas se sentirem aldrabadas, ou de terem sido aldrabadas por eles antes, e agora, de repente, eles revelam que tinham um segredo que conseguem vender exactamente o mesmo por metade do preço, ou dizer, não nós agora fazemos isto.

Eles assumem que não é exactamente a mesma coisa.

Eu acho que assumem. Eu não conversei com eles sobre isso, mas acho que assumem. Eu acho até que o Ljubomir, mais até do que o Henrique -- o Henrique está a fazer quase a mesma coisa. O Ljubomir, com mais uma pessoa na cozinha, tem lá pratos que eram da primeira carta do 100 Maneiras, de quando eu lá estava, onde os preços eram efectivamente mais baratos -um bocadinho como ele tem agora. Por isso isto não é um andar para trás. É um tipo de cozinha que se consegue.

Quantas pessoas tem aqui a trabalhar consigo?

Somos sete na cozinha mais uma pasteleira, agora temos cá mais oito estagiários.

E como é que faz a selecção?

Nesta altura toda a gente faz um estágio pelo menos de uma semana antes de entrar.

Como é que faz essa selecção? Feeling?

Tem acontecido muito naturalmente. Temos gente que bate à porta que quer trabalhar cá. Temos estagiários que fazem um estágio de três meses, que nós gostamos deles e se estamos a precisar de alguém ficamos com eles. Temos uma equipa muito, muito boa, agora.

E reencaminham, por exemplo? Aconselham a alguém?

Sim. Eu acho que há fases na vida das pessoas, se chegar aqui uma pessoa de 32 anos, ou 33, ou 34..

É tarde para ser chefe, ser cozinheiro?

Não. Não é nada tarde. Eu acho é que há alturas de investimento. Agora se ele me disser, tenho mulher, tenho filhos, não posso. Eu agora tenho estagiários quase todos miúdos – oito e recusei 20 – porque não tenho mais espaço na cozinha, mas até Dezembro vou ter mais oito, alguns deles em pós-laboral porque trabalham noutras profissões e de tarde querem experimentar a cozinha. E eu, mais do que ninguém, como fiz esta mudança dou oportunidade a estas pessoas. Trabalham sábado inteiro e das seis à meia-noite o resto dos dias. Vão-se cansar mas também. Os estagiários estão a trabalhar 14 horas por dia connosco.

Um estagiário ganha ordenado?

Nada, nada.

Ganha experiência.

Ganha uma grande escola. Eu também lhes digo, há cinco sítios em Portugal que valem a pena. Não vou dizer quais são. Mas há cinco sítios. O empreendedorismo social é uma coisa que ainda não entrou muito bem. Empreendedor sim, mas se calhar não tão social quanto isso. Mas depois dou o exemplo aqui com as duas coisas mais importantes para mim, nesta profissão. Primeiro: o prazer que tiro dos clientes gostarem da minha comida. E eu acho que tem de ser o objectivo número um. Segundo: o que as pessoas que estão comigo a trabalhar me podem sugar de bom. Podem estar aqui dois anos e levarem coisas de mim para depois serem maiores noutros sítios. Não sou nada daqueles que me sinto atraiçoado quando alguém me vem dizer que vai embora. Desde que faça as coisas com cabeça e eu ache que ele deve ir embora. Esteve aqui aprendeu o máximo possível… Tenho um escritório aqui com 200 livros de cozinha. Entrem à vontade.

Podem consultar?

Podem consultar, requisitar. Temos papelinhos. Escrevem, levam para casa e depois devolvem. Incentivo-os a isso. Ainda hoje perguntava a um: “onde é que tu te vês daqui a dez anos?. Pensa nisso, escreve, guarda debaixo do teu colchão da cama e vai acrescentando.”

Trabalho por objectivos?

Eu trabalho por objectivos. Não vou dizer a quantos passos estou de ganhar a terceira estrela Michelin. Não é isso, mas definir objectivos é traçar um rumo. A pessoa lança a vela de um barco e lança-se para o alto-mar sem saber para onde é que vai. Acho que já é difícil chegar lá sabendo para onde se vai, muito mais difícil é chegar lá sem saber onde se quer chegar. Por isso a pessoa traça um rumo e tem de saber que quer estar aqui, mesmo que faça isto e isto e volte a trás, tem que chegar aqui. e eu perguntei a essa pessoa (um grande cozinheiro, tecnicamente. Saiu da Fortaleza do Guincho, tem 26 anos, um grande profissional), “onde é que tu te vês daqui a 10 anos. Daqui a 10 anos se estiveres aqui comigo se calhar estás muito melhor cozinheiro mas estás num nível de ordenado que nunca te vai permitir subir muito. Por isso pensa bem”.

Um bom cozinheiro hoje é bem pago?

Um bom chefe de cozinha é bem pago. Um muito bom chefe de cozinha é bem pago. Um bom cozinheiro é bem pago. Mas neste tipo de restaurantes onde há chefe, subchefe - ou chefe executivo - e depois outros cozinheiros trabalham para chegar a primeiros - que são os chefes de partida - se calhar chegam a 1.000 euros e não passam daquilo. E de repente começam a criar família e aquilo é insuficiente. Têm que dar o salto por eles. Se não conseguirem dentro desse restaurante ser sub-chefe, porque esse lugar está ocupado, têm que tentar ser sub-chefe noutro restaurante. Ou, pelo menos, o nível de chefe de partida aqui tem de lhes dar para ser chefe de cozinha já noutro sitio. Como lhe digo tento ter este tipo de conversa que é importante. Tiveram-nas comigo q.b. e eu senti que foi importante. Eles estão aqui, estão a investir, a aprender, aprender, aprender. Mas este tipo de restauração não vai acabar, mas vão ficar só os melhores, porque o mercado é assim. As leis do mercado é ir afastando e é tão mau na vida a pessoa pensar que a opção que faz é por oposição à falta de escolha noutro sítio. É quase como na política, vou votar neste porque entre os maus é o menos mau. E a pessoa fazer disso decisão na vida é péssimo. Por isso digo: escolham, pensem, não tenham vergonha de um dia cozinharem sem ser este tipo de cozinha. Eu, como cozinheiro, realizo-me a cozinhar um bom arroz de pato, um bom bacalhau á Brás, umas boas favas, do que a fazer o prato mais elaborado que há no Tavares. Se calhar o lado artístico… Como estudei arquitectura antes de ir para marketing, se calhar fui buscar o que me realiza mais neste tipo de cozinha: criatividade. Mas às vezes apetece-me um bocadinho o que o Vítor fez agora: ter a tasca e fazer aqueles pratos, apesar de ele aplicar criatividade na tasca. Não são só pratos tradicionais. Mas um restaurante 100% tradicional, bem feito, também me iria realizar enquanto cozinheiro. Eu gosto é de cozinhar e de fazer comida. Mas enquanto cozinheiro e chefe de cozinha, se calhar, gosto mais de ser criativo.

Esses quatro anos de que não se lembra e foram tão decisivos para si, o que é que sente em relação a isso, apetecia-lhe saboreá-los?

Não sei se são quatro, ou se são dois, ou três…

É um privilégio estar no Tavares?

Fui convidado para vir para o Tavares e 15 dias antes tinha passado aqui à porta e nessa noite tinha sonhado que ia ser chefe do Tavares.

Há um lado místico nisso

É verdade.

Acredita?

Não acredito, nem deixo de acreditar. Agora lembrei-me dessa história. Mas é verdade. Depois chamaram-me. Uma pessoa que entrou em contacto comigo disse: “há um projecto de um restaurante de luxo em Lisboa, um grupo de investidores quer abrir e queriam falar consigo”. Tinha acabado de vir do El Bulli e antes de ir para o El Bulli tinha acabado de abrir a empresa em Cascais. Mas não digo que não, normalmente a uma primeira conversa. Conheci um dos donos da empresa e ele disse: “olhe o restaurante de que estamos a falar não vai nada abrir, já abriu – o restaurante é o Tavares. E fez-me uma pergunta muito directa: “Quanto é que você quer ganhar para ser chefe do Tavares?” E eu disse: “Isso é completamente indiferente. O que eu queria ganhar é a última questão que eu vou por à frente das outras questões todas para ser chefe de cozinha do Tavares”. Porque a minha vida ia mudar radicalmente e eu sabia que se viesse era para cá estar. E, por acaso, entendemo-nos bem porque ele gostou desta afirmação. O que interessava era o projecto. Obviamente a remuneração ao fim do mês sabe bem. Por se trabalhar. Faz parte.

Mas também ninguém convida um chefe para um restaurante de luxo para ganhar mal, não é?

Não faz sentido. Mas efectivamente foi sentido. Não foi estratégico. Antes de eu decidir o que pretendo ou o que quero o que posso ganhar tenho que decidir mil coisas. Tenho que falar com a minha equipa em Cascais a ver se conseguem aguentar sozinhos.

Como é que se gere essas duas coisas? Porque está lá pouquíssimo tempo, não é?

Pouquíssimo. Com uma confiança muito grande na equipa e durmo menos à noite. Não só pelas preocupações, mas também para desenvolver as coisas por lá.

O que faz com o pouco tempo que lhe sobra?

Namoro. E mesmo assim, se calhar, namoro pouco.

Eu ouvi-o citar várias vezes nomes da literatura. É uma coisa que gosta? Gosta de ler?

Gosto. Mas estou numa fase em que leio pouco. Porque não tenho tempo para nada e chego a casa cansado.

E mudou-se de Cascais para Lisboa, entretanto.

Estou a viver em Lisboa.

Foi uma decisão difícil, sair da terra onde nasceu e sempre viveu?

Não. Foi como as outras decisões todas da minha vida. Fui viver com a minha namorada que vive a 200 metros daqui, foi completamente espontâneo.

E dava-lhe jeito?

Acabou por dar jeito. Vamos ter um filho, agora. Por isso estamos à procura de outra casa aqui. Aconteceu naturalmente.

Portanto, as coisas continuam a acontecer-lhe. Agora vai ser pai.

Graças a Deus. Só tenho 29 anos se deixassem de acontecer…

Como diz que as coisas lhe acontecessem muito rapidamente…

Sim. Em 2009, o mais importante é que vou ser pai. E espero que a minha ansiedade reduza depois de ser pai. Porque o que eu acho que me faz não viver a 100% os meus dias é a ansiedade de querer fazer mais.

Tem medo de perder a vontade de fazer coisas? Ou de se acomodar?

Não. Tenho é medo de ter vontade a mais e de não me controlar a fazer coisas. Tenho medo de errar. Tenho pena de não ter clones. Se eu tivesse três clones conseguia fazer muito mais coisas e estava muito mais contente. É muito difícil transmitir às pessoas exactamente o que nós queremos, quando se é perfeccionista e achamos que somos donos de uma razão, pelo menos da nossa razão. E por isso tenho medo de ao multiplicar os negócios… Parece o diabo e o anjo, não sei qual diz o quê, mas um diz: “vai e abre o negócio”, e o outro diz “não, vais-te matar, vais perder o controlo.” E é neste equilíbrio que tem de se viver. Esta ansiedade e esta vontade de fazer é um bocadinho um descontentamento em relação ao que eu tenho. Estou contente mas estou sempre descontente porque quero sempre mais. Faz com que os prémios todos que ganhei até hoje, ou as distinções que é o que eu gosto mais de lhes chamar, tivessem um valor quase insignificante. Têm aquele valor e depois esqueço-me. É como a estrela Michelin é importante que ela venha, mas se depois vier está aí arrumada venha a seguinte.

Está aqui num sítio cheio de tradição. Por quanto tempo mais é que se vê aqui?

Não tenho ideia. Dez anos, cinco anos, vinte, trinta. Não tenho mesmo ideia.

Revê-se neste espaço.

Revejo. Sinto-me bem aqui. Acho que é a minha casa. E tenho muito orgulho de ser o mais antigo de Portugal e tenho muita sorte porque as pessoas vêm muitas vezes celebrar ocasiões especiais e eu entro na vida das pessoas. Já tive aqui casais que vieram aqui celebrar 30 anos de casados e os pais deles já tinham vindo celebrar os 50 anos de casados. E eles trouxeram o menu de mil novecentos e troca o passo dessa celebração. Cantei na mesa o “happy birthday” para uma senhora de 70 anos que ficou radiante. Tenho aqui no livro de honra. O rei da Jordânia, que esteve aqui a jantar a semana passada, escreveu no livro de honra que tinha adorado. Nem o conheci. Fiz questão de não ir à sala cumprimentá-lo porque é um rei e eu não tenho não de ir lá incomoda-lo.

Nessas circunstâncias comportam-se de maneira especial, ou funcionam da mesma maneira seja um Rei da Jordânia ou otro cliente qualquer?

Se viesse cá o Adriá era mais importante do que o Rei da Jordânia. São coisas diferentes. É como um produtor de vinhos dar o vinho ao Parker ou dar ao presidente de não-sei-o-quê.

Também teve formação em vinhos.

O curso de vinhos que eu fiz foi completamente como amador. Como alguém que tem prazer a beber vinho.

Mas apurou esse lado?

Sim, apesar de o meu trabalho com vinhos ser muito bom, com o José Bento dos Santos. Tenho aprendido muito com ele. Para se perceber de vinhos demora muito tempo. Hoje em dia toda a gente opina de vinhos, como opinam sobre comida.

A cozinha está na moda a cozinha, sente isso?

Acho que sim. Já teve mais na moda em algumas coisa, menos noutras. Acho que ainda há uma grande complicação na cabeça das pessoas, o que é alta-cozinha, o que não é alta-cozinha. Eu vi perguntarem ao Adriá se ele como o Jamie Oliver eram pessoas importantes na divulgação da cozinha e ele riu-se. Porque ele e o Jamie Oliver são universos diferentes. “No Oliver gosto muito de o ver na televisão mas o que e faço são coisas diferentes. Divulgo a alta-cozinha e o Jamie Oliver divulga como é que se faz massas e…que não é melhor nem pior, mas são coisa diferentes”. E é um bocado o que falámos há pouco dos restaurantes. Se as pessoas não conseguem distinguir que um restaurante onde se paga 30 euros por menu de degustação é diferente do Tavares onde se paga 75 euros... se não conseguirem no paladar ou na percepção de qualidade perceber a diferença aconselho vivamente a irem ao de 30. Sai muito mais barato. Se conseguirem perceber a diferença, que venham pelo menos uma vez ao de 75. No outro dia vi escrito um comentário: “vou ali para o Bairro Alto, em vez de gastar 100 euros no Tavares. gasto 50 no 100 maneiras”. E depois ele comentava, mas não é a mesma coisa. Não é que seja pior, são coisas diferentes. Porque eu tenho sete pessoas que trabalham aqui 15 horas por dia para servir às vezes 30 refeições.

O que é um dia bom aqui? Quantas refeições serve?

50, 55. O Maio foi o nosso melhor mês de sempre, servimos uma média de 45 refeições/dia. Temos 43 lugares. É um restaurante relativamente morto ao almoço, apesar de hoje termos estado cheios. Tínhamos em evento. Não vale. Hoje temos quase 30 reservas para a noite. Hoje vai ser um bom dia para o Tavares.

Hoje vai se um bom dia para o Tavares?

Vai. De facturação. Às vezes é bom -- para o negócio não -- termos 15 pessoa na sala. Estarmos com uma atenção redobrada, sobre tudo o que sai. Às vezes temos 40 pessoas e pedem 20 menus de degustação – o que é uma loucura para a cozinha. E há dias em que chegamos a sair daqui às 3 da manhã, para deixar tudo orientado para o dia seguinte. Por exemplo, na altura do Peixe em Lisboa. Eu acho que o que mudou, graças a deus, mais por expressão do que por devoção, é ter a equipa que tenho e trabalharmos todos com o mesmo objectivo de fazermos cada vez melhor. Se a estrela Michelin vier que venha se não vier não venha. O que importa é que as pessoas que cá venham fiquem contentes, se sintam realizadas. Cada vez mais consigo transmitir a minha alma, o meu sentimento para a cozinha.

O que é que gosta mais: dos momentos em que está a cozinhar para as pessoas, ou dos momentos em que está a pensar numa coisa nova?

Adoro pensar em cozinha. Às vezes mais do que cozinhar. Eu adoro pensar cozinha, como é que chego aquele prato. Às vezes estamos aqui com um prato há duas semanas, vai não vai, experimenta-se e dá-me assim uma branca, ou uma claridade, uma luz e não é nada disso. Vamos encomendar isto, isto e isto porque este prato vai ser assim. E é um prato que surgiu naquele minuto. Acredito que as ideias não estão cá dentro, andam aqui. Acredito imenso nisso. Às vezes temos que ter humildade e atenção para a ir buscar. E não ter preconceitos também. Eu acho que a grande arma do Adriá é de não ter estado numa escola de cozinha clássica. Não ter estado no meio dos restaurantes. Estar lá muito isolado e ter conseguido não criar preconceitos culinários que os franceses criaram e transmitem-nos na escola também. E a pessoa de repente pensar que vale tudo, independentemente de que seja bom. É um bocadinho como no sexo, vale tudo. Se não for para magoar. (ri) e na cozinha é um bocadinho isso. Eu digo sempre, não vale tudo porque a fronteira é o mau. As pessoas começam a pensar vamos cruzar isto com aquilo e é uma grande confusão. E se é mau não vale nada. Mas se é bom não há regras. Se é para dar prazer não há regras. Eu acho que é importante. E o Adriá é um bocadinho como as crianças. As crianças nascem despreconceituosas. Quando lhe fazem dois risquinhos numa folha e a professora pergunta o que é eles dizem que é um avião, ao contrário, e uma formiga a dar um mortal. E uma pessoa com preconceitos diz: é um risco. E isto é o fim da criatividade. Por isso o Picasso dizia que com 14 anos desenhava como Rafael, mas só muitos anos mais tarde aprendeu a desenhar como uma criança.

É desconstruir.

É libertar-se. A pessoa tem que dominar a técnica. Mas depois tem que se libertar dessa técnica para que com a intuição e com essa liberdade e com o abandono dos preconceitos. Conseguir fazer uma coisa diferente. É um bocadinho olhar-se para um Fred Astaire a dançar e pensar, “que espectáculo!”. Lembro-me do Michael Jackson, hoje em dia já não era exemplo para ninguém, mas o que fez há 15, anos, ou 20. A pessoa olhava para ele a dançar e era impressionante. E depois pensar no que aquilo teve por trás – um trabalho desgraçado. O grande desafio aqui, na cozinha, é a pessoa treinar tanto, tanto, tanto que depois as coisas surjam naturalmente. Depois o Pierre Gagnaire defende sempre: “Eu sou um artista, não sou um cozinheiro.” É um bocado estranho definir-se o que é um artista. A minha namorada trabalha na Gulbenkian e ela organiza exposições e quem vem tanto são pintores, como fotógrafos, como escultores, como instaladores –fazem instalações – e fui jantar com eles e perguntaram-me: também és artista? Não, não sou. Porque eles falam entre eles, este é o artista não sei de onde, aquele é… “que é esta história de eles serem artistas?”

O José Avillez não diz que é um artista?

Não. (ri) Se as pessoas quiserem dizer…Mas acho que não. Acho que tenho e meu favor trabalhar muito. E tenho intuição que faz se calhar ver o que faz sentido, mas se consegui alguma coisa, ou se estou a conseguir é fruto do trabalho. E as pessoas que trabalham comigo sabem isso. Uma das pessoas que está aqui a trabalhar, de que falei há bocado, veio da Fortaleza do Guincho e veio aqui tocar à campainha nas traseiras e eu fui abrir a porta e ele ficou a olhar para mim com um ar muito estranho e eu disse: “Boa tarde”. E ele disse: “Boa tarde, chef” Não estava à espera que viesse abrir a porta.” Eu disse: “Sou quase sempre eu que abro a porta, cá”. E ele: “Pois até achei que não estava cá”. “Estou, estou”. E depois acabou por vir para cá trabalhar e percebeu que eu cá estava. Porque há um bocadinho a ideia, o chefe dá o nome.

E não abre a porta.

Eu faço. Hoje em dia menos, porque tenho andado com mais trabalho no escritório. Mas nos primeiros seis, sete meses, eu era o primeiro a chegar ao restaurante e era sempre eu que abria a porta a toda a gente que entrava. Um bocadinho para começar o dia.

Versão integral da entrevista concedida à jornalista Isabel Lucas e publicada em 4 de Julho de 2009, (numa versão mais reduzida) no Outlook, suplemento de Sábado do Diário Económico.